terça-feira, 29 de novembro de 2011

TERRA QUEIMADA...

Líricas do Vento

Líricas do Vento 
Entre ânforas e Viveiros

As coisas lacrimejam
Ávidas de águas e asas. 
E estou grávido de pétalas e rumores
Náufrago de palavras e gestos gastos. 
Respiro a íris da flor e a síncope do vento...


Entre pássaros e flores





Na janela da memória

Desenho as horas e seco meus cabelos. 
Beijo os pés do herói e o barro e o sol que o mantém. 
Mas também trago a luz branca da minha casa. 
Amena e clara luz branca da minha infância. 
E estou grávido de risos, guisos, rios e versos.


Mas há uma palavra que cala
Impávida lâmina que levita em meu viveiro. 
Ela é breve, não austera, fugidia.
Serve aos meus brios.
E noites a fora segreda sua sombra
No sono dos homens e das pedras.
E então estou ávido de sono e colo...


Estou farto dos insetos
Do pó da sala que vai até o quarto
E que entulha nos porões dos dias
Quero trovas, cetros, sândalos, crisântemos e vinhos.
Entornar farsas nas primeiras horas da manhã, 
Sem gastar o meu orvalho.


Espero a letra, o cão, o cajado, todas as lâminas... 
Houve um dia que cravei um pincel no tinteiro
E feri a página. 
As frases eram frágeis
Feitas de osso e pó
Precipitavam-se no tempo
Ou precipitava-me no imaginário? No meu mistério?
Feri também um dia 
Um cravo com as mãos, 
As cordas de um violão...


Ainda que preguem aos meus ouvidos
Falsos sonetos
Estes cairão ante meus pés.
Porque estou grávido do vento frio do mês de agosto.
desde suas primeiras horas.


Seca meus pés e minha face, tempo, se for do meu merecimento.
Estou ávido de ascensões, e heloins, e coisas mundanas...
Tudo numa contração tensa e sadia.
O cheiro da terra no ventre tece o avesso,
O sentido das coisas na voz trama agora 
o endosso de realidades férteis, ainda que frágeis.
E trago ouro, prata e mirra a todos os arcanos e arcanjos
Em todas as minhas intenções.

E que venham todos para as minhas bodas.
Estou grávido...
O Vento

Cisne Negro Um filme poético sobre duelar com a própria sombra

Era uma vez... uma little princess chamada Nina Sayers - uma bailarina que vivia aprisionada em um corpo de menina - sua torre de marfim. Sua mãe a prendera sem portas e janelas, apenas frestas para que ela olhasse o mundo pela treliça com temor e angústia. Sua mãe com seu jeito grave, não esboçava sequer um sorriso, com seus cabelos devidamente amarrados, com seus trajes escuros, num luto permanente. Havia tentado num passado remoto também ser uma bailarina de sucesso, mas precisou interromper sua carreira com o nascimento da filha Nina.
Nina através de uma árdua disciplina, se tornara uma exímia bailarina. Um dia ela fora selecionada pela sua Cia. para ser a Rainha dos Cisnes no Lago dos Cisnes. Para isso, Nina tinha que superar o maior obstáculo que havia em seu caminho: ela mesma. Além de viver o Cisne Branco, Nina precisava encarar sua sombra e reconhecer nela o Cisne Negro - a luxuriosa irmã gêmea que engana o príncipe a ponto de impedi-lo de quebrar o feitiço que só seria destruído com um verdadeiro amor. Devastada por perder o grande amor de sua vida,  o Cisne Branco sobe em um penhasco e por fim se mata.


 Cisne Negro (2010) é uma fábula moderna, um thriller psicológico sobre uma mulher aprisionada num corpo de menina.  Natalie Portman está numa atuação única encarnando uma bailarina (Nina Sayers) que vive sua esquizofrenia até as últimas consequências entre alucinações, e desejo de transcender o estado que se encontra. Nina é bailarina de uma companhia novaiorquina que tenta dar uma virada com a montagem de um novo trabalho, lançando simultaneamente uma nova solista.
Uma jornada quase arquetípica de uma mulher que vê o prazer como culpa, que afoga Dionísio, o sufoca por não permitir que venha à tona o desejo, o feminino. Uma história de paixão e medo. Nina é o próprio Apolo às avessas, alternando disciplina e controle com inflexibilidade e rigidez; tudo banhado a muito sofrimento.
Mas é com muita tensão e sedução que Nina se desfia (literalmente) para que uma nova ânima (porção feminina amordaçada por ela) surja. O tempo inteiro o filme desliza entre o ponto de vista de Nina e das outras personagens; a bailarina experimenta o delírio de viver uma metamorfose dolorosa tirando o cisne negro de suas entranhas, fincado em sua pele, por todo o seu corpo.
Durante essa transformação, num jogo de duplicidade, como num salão de espelhos, vê com horror sua sombra psíquica projetada em mulheres livres e impulsivas como Lily (Mila Kunis) - nova componente da Cia. na qual Nina participa, uma jovem espontânea e intensa - e Beth (Winona Ryder) - bailarina aposentada, substituída pela protagonista - um signo repleto de ira e vaidade. Um filme que toda mulher e todo artista deveria religiosamente conferir.


 Darren Aronofsky já havia provado o seu brilhantismo com filmes como Réquiem para Um Sonho e Pi. Cisne Negro é sua grande apoteose, recebendo cinco indicações no Oscar e no Globo de Ouro (sendo premiado em ambos com o prêmio de melhor atriz para Natalie Portman, mas do que merecido).
O filme dividiu opiniões entre críticos e cineastas. Em Réquiem, Aranofsky dera um verdadeiro soco no estômago de quem o viu nas salas de cinema. Cisne Negro vem com a mesma embriaguês, subvertendo a narrativa, lançando o tempo todo o espectador num labirinto de dúvidas. Para alguns, o diretor joga poeira nos olhos do cinéfilo o tempo inteiro, mas Aranofsky apenas trás todas as atenções para o que rumina por dentro de Nina.
Thomas Leroy (Vincent Cassel) vive o diretor artístico da Cia. que inicia a protagonista na sua aventura mitológica, dramática, psicanalítica, catártica. Nina em carne viva, apagando a criança que a aprisiona, empurrando para fora a presença psíquica castradora da sua mãe, fazendo as pazes com tudo que é espontâneo, tudo que é de repente, que é sentimento.
Na história, Nina se encaixa perfeitamente no Cisne Branco com toda a sua candura, mas o Cisne Negro mexe diretamente com a dificuldade da bailarina de se vê demasiadamente humana, e é assim que ela começa a desejar e a se projetar sobre Lily e Beth.
A cada situação que envolve prazer e alegria, Nina não se permite, mutilando-se, chorando às escondidas ou vomitando tudo que a alimenta e nutre. Seu jeito esquálido, e sua fragilidade são permanentemente desestruturados, desconstruídos pelo seu mestre Thomas - pelo qual Nina se apaixona, e se envolve num jogo de sedução que a açoita e a enfeitiça.
É muito pouco prender as sensações provocadas por Cisne Negro em confusões narrativas ou em um desfile de transtornos mentais. O filme é uma verdadeira aventura em busca de si mesmo, uma viagem que deseja encontrar o mundo, que deseja simplesmente "sentir para ser perfeita", e tocar a epiderme do mundo através da fantasia.
Durante todo o filme, Aranofsky coloca a inutilidade do excesso de dedicação e disciplina dando-lhes contornos de frieza. Prega mesmo a poesia do corpo que improvisa, que erra, que tem cheiro; o cheiro que tem as relações longe dos mundos obscuros cheios de exigência no qual o espectador vive através dos delírios de Nina.
Não se entregar à paixão e as ditas agruras que nos fazem pulsar como gente e como bicho é a maior covardia vivida por Nina durante todo o filme. Thomas aponta mesmo o caminho da perfeição: sentir. Num mundo onde as pessoas andam mesmo aprisionadas dentro de si mesmas, Cisne Negro nos convida a nos largarmos no mundo sem rede de proteção para estar nele de forma completa. 

A Rede Social Alguém quer tc? Ou texto crítico-poético nada didático para ser lido ouvindo Creep interpretado por Vega Choir - Por Ivan Ferreira

Às vésperas da cerimônia do Oscar, A Rede Social (The Social Network, 2010) de David Fincher, o mesmo diretor de Seven - Os Sete Pecados Capitais (1995) e Clube da Luta (1999), se torna um dos favoritos à principal categoria de melhor filme ao lado de
O Discurso do Rei (The King's Speech, 2010), além de levar mais sete indicações (melhor edição de som, melhor trilha sonora, melhor montagem, melhor fotografia, melhor roteiro adaptado, melhor ator - Jesse Eisenberg) e melhor diretor. O filme ganhou no Globo de Ouro 2011 prêmios de melhor filme, diretor, roteiro e trilha sonora. Um drama que fala sobre a fundação do Facebook e que "narra", fabula a história do seu criador, Mark Zuckerberg em tal jornada.


Simulacro. Simular. Fabular. Na rede: um eu trocado, retalhos de imagens, palavras, iconografias, publicidade. Nos recônditos da solidão imersos na rede social, personagens se recriam em busca de aceitação, de serem incluídos através de suas invenções. Na rede somos imagens que dialogam, que se pulverizam, aparecem. Desaparecem. Zuckerberg, o da vida "real", fez história ao dar mais um ponto nesta costura que cada vez mais distancia o homem de si mesmo e de suas relações com o mundo.
Do que fala Rede Social?
Todo mundo quer estar junto, fazer parte de algo e na cultura do medo, andamos meio que enclausurados, enquadrados em nossas caixas, casas e apartamentos aguardando a qualquer momento alguma janela (digital) ser aberta.
"Em que janela deixei o último rastro de um personagem que crio e recrio todos os dias, maquiando a verdade? Mas o que é a verdade? Alguém aí pode me responder? Tem alguém aí?"

ou
O mundo digital é perfeito demais para simplesmente em plena luz do dia, aparecermos circulando pelas ruas. Na cosmética do belo, um rosto orgânico demais, gorduroso demais precisa do fotoshop perfeito, do ângulo perfeito para enfim ser aceito e receber, quem sabe, um comentário.

"É preciso encarar o lado obscuro de ser sempre outro além de si mesmo. Quer tc comigo ainda? Estou mais uma vez sozinha no escuro do quarto. A propósito, usar máscaras parece fazer parte de tudo isso aqui."

ou
A sociedade se tornou cada vez mais esquiza, esquizofrênica, esquiva, a imagem do outro é grande demais para que eu chegue tão perto dele...
ou
O desejo é um buraco sem fim. Eu e o outro: "Somos dois abismos: um poço fitando o céu" - Bernardo Soares  heterônimo de Fernando Pessoa.
"A cada janela um novo rosto se desenha numa nova caverna e quantos mega pixels são necessários para revelá-lo? Alguém aí pode me responder? "
Não, é apenas um filme. É apenas um filme? É apenas mais uma biografia ficcionalizada. Mas a história dos fundadores do Facebook guarda rastros, retratos de uma geração. O rosto pálido, esquálido, grave de Jesse Eisenberg no papel de Mark Zuckerberg (fundador oficial do site) esboça janelas de trincos e chaves para o real, ainda que aparecendo e desaparecendo para um bate-papo nas redes sociais.
O filme acontece enquanto o personagem principal responde a dois processos: um por roubo intelectual da ideia do site, outro por ter passado a perna no seu melhor amigo e co-fundador Eduardo Saverin. Com vários flashbacks costuramos pouco a pouco a história.

"Vários. Estou sozinho aqui também – pelo menos por enquanto. Devemos sim falar sobre isso e tal. Acho que somos reféns dessa caverna. Estamos presos à acidez de estar sempre à parte do mundo e das pessoas e isso pesa como chumbo sobre nossos dedos. Alguém parece vir! Pera! Pera!!"
Vejo inadequação ao real, confusões juvenis, sedução e poder: Solidão. Mas, calma, ainda se trata apenas de um filme.
Mark Zuckerberg na vida real é o mais jovem bilionário do mundo e está longe de ser a figura triste e solitária do filme que sofre retaliação por parte das mulheres de Harvard. Longe também de achar que não importa ter bilhões de dólares já que a namoradinha da faculdade o desprezou: "Olha, provavelmente você vai ser uma pessoa com muito sucesso com pcs, vai passar pela vida achando que as garotas não gostam de você, elas ñ vão gostar de você não porque é um nerd e sim porque é um idiota", detona a jovem Érica Albright ao acabar o namoro com o ainda estudante de Harvard que ambiciona ser aceito pelo Final Clubs - Um diálogo frenético que abre o filme e parece mais duas caixas de diálogos abertas metralhando uma verborragia sem fim, fluxo de consciência materializado. A interpretação de Eisenberg com sua expressão mecânica e fria, com sua fala ligeira como um teclado ágil, quase um rap ao som da excelente trilha sonora, arma pouco a pouco um quebra-cabeças cheio de intrigas.


 "Quer tc comigo? Já é tarde e estou na casa de um primo. Mas me sinto tão só... Estão todos reunidos lá fora. Em que reunião de família esqueci no canto da sala meu riso, meu rosto claro que se iluminava em plena luz do dia? Alguém quer tc comigo? Parece que sou estranha demais para estar com eles lá dentro. Alguém quer tc?"

 Timberlake encarna um arquétipo quase bíblico da sedução que escraviza e mantém vivendo Sean Parker - jovem empresário falido, viciado em drogas que se aproxima de Mark para tirar proveito de suas descobertas se tornando um verdadeiro ego auxiliar do jovem bilionário.
"Sou nova, e meus dedos estão calejados por buscar apenas ilusões na luz azul que brilha no centro da minha caverna. Onde estará por esta cidade estranha, por esta multidão solitária, o outro, o espelho que irá me refletir e eu a ele?"
Por outro lado, David Ficher põe em crise as relações virtuais, apontando no seu fabulário cinematográfico que nada substitui viver o mistério com o outro em plena luz do dia (ou da noite).
Tive uma estranha sensação ao ver esse filme duas vezes e não sentir vontade de escrever uma crítica sobre ele. Sob o impacto da música Creep belamente interpretada pelo Vega Choir no trailler de Rede Social escrevi-a. Ao terminar esse texto, nasce a vontade de rever o mesmo filme que me inquietou sem saber porque. Talvez porque ele tenha mais a ver com a nossa geração do que eu supunha.

* Os trechos em destaque são do texto teatral "Por onde andas longe de Mim ou a caverna é escura demais" de autoria de Ivan Ferreira. O espetáculo ficou em cartaz no Recife no ano passado, fala de cinco jovens enclausurados em seus quartos teclando uns com os outros buscando uma sensação de pertencimento, vivendo num hiato entre o mundo real e o virtual.

  

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A História da Eternidade - A rota rente do tempo na carne do mundo

Em A História da Eternidade (2003) Camilo Cavalcante mais uma vez exercita o seu rigor poético e operístico, convidando-nos a uma adesão sensorial imediata à epiderme dessa obra contundente. São traduções posicionadas no interstício entre o particular e o universal. Permanecemos atônitos com seu realismo crítico, sua interdição do real. Com sua textura árida, esse filme errante expressa a austeridade desse cineasta, que nos coloca diante da carne viva do mundo com sua angústia gráfica, grave e circular. Seus códigos, urdidos de forma precisa num plano seqüência forjado, emaranham-se na tez do incômodo, evocando o espectador, lançando-o numa catarse ininterrupta. Suas imagens latejam para todos os lados sobre o signo do tempo e seus descaminhos.

O filme se situa na fronteira, nos intervalos entre a narrativa e a própria contemplação das imagens, a experiência sinestésica de sua plasticidade e a crueza dos seus sentidos possíveis. Tudo nesse filme grita luz e a escassez do acaso pulsa de forma lírica e dolorosa no calor das horas que se passam. É uma obra áspera que se redesenha numa fluidez intermitente do sagrado e do telúrico com sua corporalidade tenaz e arredia. Um trabalho que nos atinge de forma frontal. Nenhum espectador sai incólume ao seu viço.